...estamos a perder turismo Autêntico.
É um conceito bastante simples de compreender: gostamos de viajar e ir conhecer o que de autêntico e único tem cada lugar. Não vamos à cidade “A” porque tem restaurantes: vamos lá porque tem aquele tal restaurante que tem um serviço distinto, uma decoração arrojada, um menu que é uma festa para os sentidos. Não vamos à região “B” porque tem praias: vamos porque tem aquela tal praia, perto da qual tem aquele tal restaurante e aquele tal hotel, que satisfazem uma longa lista de desejos que temos para passar os dias de férias que passámos um ano inteiro a acumular. Não vamos à cidade “C” porque tem monumentos: queremos ir lá para ver aquele tal castelo portentoso, ou aquela catedral que celebra uma era de esplendor, ou porque tem a recriação de uma batalha fundamental da nossa História colectiva.
O que não vamos certamente fazer é ir ao local “X” porque tem lá passadiços: já há um enxame deles por todo o canto neste país. Não vamos à vila “Y” porque tem lá uma ciclovia: já são aos pontapés de Norte a Sul. E certamente não vamos à serra “Z” porque tem lá um baloiço e um miradouro... Faltará pouco tempo também para que até uma qualquer estrada municipal 300 e qualquer coisa já seja uma “Legendary Route”, dando entrada a uma curta lista de cidades e vilas que nos dão as boas-vindas com o seu nome em letras garrafais sempre em 3D, num mesmo jardim, numa mesma disposição, e com o mesmíssimo lettering.
Mas é precisamente este conceito absurdo que se tem fomentado, numa voragem de originalidade em morte cerebral, num perpétuo copy/paste, de glorificação em massa do medíocre, do risco zero em inovar, e finalmente e para não deixar dúvidas do caminho que intencionalmente se quer seguir, de aniquilamento do que é original, do que é “nosso”. Quando começámos a odiar desta forma visceral o que é Autêntico?
Lembram-se dos concursos das Sete Maravilhas de Portugal? Que ano após ano escolhia um tema específico, eram apresentados recursos turísticos específicos desse tema a concurso, e numa votação nacional se escolhiam os melhores dos melhores? Bom, entre as várias edições que surgiram, Trás-os-Montes entrou no pódio por diversas vezes. Vou agrupar pelas três Vias Estreitas trasmontanas estas Maravilhas, as quais foram escolhidas entre temas relacionados com Gastronomia, Tradições Populares, Praias, e Natureza:
Linha do Corgo / Linha de Lamego: Festas de Nossa Senhora dos Remédios (Lamego); Mesa de Vila Real (Vila Real); Crista de Galo (Vila Real); Parque Nacional da Peneda-Gerês (Montalegre).
Linha do Tua: Alheira de Mirandela (Mirandela); Mesa de Mirandela (Romeu); Praias da Albufeira do Azibo (Macedo de Cavaleiros); Mel Biológico do Parque Natural de Montesinho (Bragança/Vinhais); Rio de Onor (Bragança).
Linha do Sabor: Amêndoa Coberta de Moncorvo (Torre de Moncorvo).
Agora somem a estas três vias o sítio “Douro Vinhateiro” Património da Humanidade da UNESCO, e à Linha do Sabor em específico o sítio “Gravuras Rupestres do Vale do Côa” Património da Humanidade da UNESCO, bem como outras manifestações culturais inscritas na listagem de Patrimónios da Humanidade da UNESCO, como a olaria de barro preto de Bisalhães (Vila Real), ou os Caretos – e aqui recuso-me fidagalmente a carimbar como “de Podence” esta tradição celta que se manifesta desde Lazarim (Lamego) a Ousilhão (Vinhais), Salsas (Bragança), e Bemposta (Mogadouro), entre outros.
Parem de tentar glorificar de forma tão histérica o miradouro do Ujo, sobre o charco em que tornaram o rio Tua, num pseudo Parque Natural que só foi criado depois de se ter artificializado brutalmente um vale com uma albufeira: logo acima há outro exactamente igual no Castanheiro. Miradouros são os de São Leonardo de Galafura, ou de São Salvador do Mundo – um que até o notório trasmontanofóbico José Cid exaltou numa canção com o mesmo nome – ou o do Penedo Durão. Estes não precisam de plataformas artificiais em aço, nem de nos serem empurrados pela garganta abaixo de forma insistente. Porquê? Porque são Autênticos: são manifestações poderosas da própria Natureza, com os seus penhascos de meter medo, em alturas impossíveis de replicar, e que já atraíram séculos antes a fé popular a erigir pequenas ermidas que se fundem harmoniosamente na paisagem, e os poetas e trovadores a dedicarem-lhes versos.
Os turistas vêm a Trás-os-Montes atravessar o vale do Douro e a sua Região Demarcada, a mais antiga do mundo, de navio ou em um dos três comboios turísticos disponíveis ao longo de todo o ano; vêm ao Santuário e às Festas de Nossa Senhora dos Remédios; vêm às termas de Chaves e beber águas das Pedras Salgadas; vêm a Miranda ouvir a segunda língua oficial do país, ao som das gaitas de foles e dos pauliteiros, e baterem-se com uma portentosa posta mirandesa; vêm a Bragança ver o mais icónico castelo de Portugal e a última das aldeias simultaneamente portuguesa e espanhola; vêm ao festival de Rock de Carviçais, à Noite das Bruxas de Vilar de Perdizes, a um parque aventura em Ribeira de Pena, aos Diabos de Vinhais; vêm recuperar forças numa noite dormida no Parque Biológico de Vinhais, ou a ouvir as cascatas do Gerês, ou a receber uma massagem no mais alto Spa de Portugal na Serra de Bornes; vêm beber vinho do Douro e do Porto, comer uma alheira de Mirandela, um salpicão de Vinhais, um presunto de Chaves, uma amêndoa de Moncorvo, um covilhete de Vila Real.
Não vêm para este freak show com contornos de orgia, de ciclovias, e passadiços, e baloiços, e plataformas em aço enferrujado, e letreiros em 3D. Não vêm de bicicleta, nem se vão deslocar pelo território a pé ou de trotineta. Quem se dá ao trabalho de contabilizar quantos milhões de euros se perdem anualmente em receitas turísticas graças a esta diarreia mental glorificada por autarcas e ministros, fomentada por uma plenipotenciária e intocável Infraestruturas de Portugal, enquanto se tenta de forma frágil como porcelana passar a ideia de que a ferrovia é ao mesmo tempo uma coisa de pobres porque se anda devagar, e de futuro porque se anda estupidamente rápido?! Em quantos milhões de euros se agrava a qualidade de vida e as oportunidades de emprego na Região, ao se manter todas as matérias primas e produtos em trânsito reféns do transporte rodoviário?
Trás-os-Montes não é uma história de cinema, passada num mundo distópico ao jeito do “Homem Demolidor”, do “Matrix”, do “Equilibrium”. Tampouco se encontra numa situação geográfica ultraperiférica, como a Esvalbarda, ou Pitcairn, ou Severnaya. Se um Governo e uma Assembleia da República, década após década, falham miseravelmente em se aperceberam desta realidade, e nem conseguem contabilizar as perdas financeiras e sociais que esta acarreta, então não são dignas de gerir este território, e está mais que na hora desta região se igualar aos nossos compatriotas açorianos e madeirenses, e se elevar ao patamar da sua dignidade repetidamente enxovalhada: ao da Região Autónoma de Trás-os-Montes.
Daniel Conde
Cidadão Trasmontano
Vila Real, 24 de Outubro de 2023.
*As partes anteriores encontram-se na minha página do Facebook, Via Estreita.
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