Quando soube que Ridley Scott - o realizador de uns tais de Blade Runner, Alien, e Gladiador - estava a preparar um filme sobre Napoleão, fiquei muito entusiasmado. Sim, Ridley Scott também é o responsável por desilusões em barda, como Alien - Covenant, Êxodo - Deuses e Reis, e mais recentemente O Último Duelo, mas entrei com altas expectativas para este novo filme.
Quando saiu o trailer, os primeiros sinais de que algo de errado se preparava para acontecer chegaram, quando no que seria uma cena da Batalha das Pirâmides de 1799, a artilharia francesa acertava em cheio com uma bala de canhão... no topo das Pirâmides de Gizé.
Auch...
O filme chegou aos cinemas, estive vai não vai para o ir ver (graças ao bom Deus no céu, não fui), o filme saiu dos cinemas, fui espreitando os comentários ao filme... e não foram nada simpáticos ao trabalho final.
Bom, no final da semana passada decidi dar o benefício da dúvida, e julgar eu próprio o filme. A experiência correu tão bem quanto podem imaginar: desisti de ver mais a partir da patética representação da Batalha de Austerlitz, apenas e só a magnum opus de Napoleão. Que absoluta desilusão!...
Mas o filme é sobre o quê, afinal?
Bom, do tempo de filme que consegui tolerar assistir, "Napoleão" de Ridley Scott conta a história do relacionamento amoroso entre Napoleão Bonaparte, e Josephine de Beauharnais, no meio de alguns episódios significativos e atrozmente mal representados da carreira militar e política de Napoleão. Ponto, that's it.
Aliás, não, não nos ficamos por aí. Enquanto fui assistindo aos primeiros minutos de filme, com uma banda sonora que mescla tão bem com a acção a decorrer como azeite se mistura com água, surge um Napoleão com uma expressão sorumbática de quem está a passar um monumental frete.
Esse será o disparate n.º 1 de uma longa lista de "Mas que diabo estou a assistir?!". Napoleão era um fervoroso republicano, com ideais políticos bem vincados no período revolucionário francês - basta ler o seu panfleto Le Souper de Beaucaire para ter uma ideia. Era também um homem cheio de ambições, pelo que tudo somado duvido que resultasse em alguém com uma expressão de enfado, enquanto páginas tumultuosas e sangrentas da História do mundo eram escritas mesmo ao lado.
O Cerco de Toulon de 1793, no qual entraria como Capitão, seria promovido a Major, e sairia como General de Brigada, com apenas 24 anos, é aqui representado de uma forma tão trapalhona que não é preciso ter-se conhecimentos de História ou do Exército para assistir a tudo isto com olhar de genuíno espanto.
Quando Napoleão chegou para assistir ao comando da Artilharia francesa, faltava um pouco de tudo, entre canhões, pólvora, munição, e até homens treinados para operar os canhões. Toulon era defendida por milhares de soldados aliados, redutos e fortes, pelo que as forças republicanas francesas se encontravam FORA da cidade, e não DENTRO como mostrado no filme, com os britânicos a defenderem aparentemente um único forte. Para tornar tudo cada vez mais ridículo, as forças francesas (no filme) entram calmamente pela cidade adentro, e acercam-se do forte de noite, com ZERO sentinelas nas muralhas do forte - fuck sake....
O ponto mais baixo, contudo, foi assistir a um Napoleão titubeante e transido de medo durante o assalto, para no rescaldo se pavonear como um bad boy, ao ponto de retirar do peito destroçado do seu cavalo a bala de canhão que o matou, com as próprias mãos.
Segue-se o verdadeiro foco do filme: a relação amorosa com Josephine. Aqui, tão rápido transparece o bad boy, como na cena em que se gaba de ter sido o responsável pela tomada de Toulon, como discorrem cenas de juvenis e constrangedoras tentativas de beijos, ou na excruciante cena do divórcio, em que se assoa descompassadamente num lenço, lavado em lágrimas. Neste ponto, se me dissessem que este filme era na verdade uma peça de propaganda britânica para ridicularizar Napoleão, eu subscreveria inteiramente essa noção.
Militarmente falando passa-se fugazmente pela Campanha do Egipto de 1799, dando zero contexto sobre o que estavam ali a fazer, e mostrando a infeliz cena da bala de canhão a bater no topo das Pirâmides de Gizé, com um exército Mameluco - infame pela sua mobilidade a cavalo ou em camelo, mas aqui representado por... infantaria - aos pés destas, quando a verdadeira batalha se desenrolou a quilómetros de distância. A anterior campanha, talvez a mais brilhante de Napoleão, na qual "sozinho" trouxe a Primeira Guerra de Coligação ao fim, a Campanha de Itália de 1796, é despachada com a bestial citação pelo próprio personagem de Napoleão como "a Itália rendeu-se sem resistência"... De bradar aos céus!
Acompanhem-me na minha dor: a Campanha de Itália foi a primeira de Napoleão enquanto comandante de um exército, chegando à frente de uma força tão negligenciada que havia soldados a marchar sem botas, e sem receberem um franco de soldo há meses. Em dias (DIAS!), esmagaram o Reino do Piemonte, arrebanhando para a França uma tal de região de Savoy até hoje. Seguiram-se momentos históricos frenéticos, como os da Ponte de Arcole - apenas aquela em que Napoleão se imortalizou a tentar passar uma ponte, sozinho, debaixo de fogo inimigo, a segurar uma bandeira francesa - o Cerco de Mântua, ou a brilhante Batalha de Rivoli, na qual sob ameaça de cerco, Napoleão ter-se-á virado para os seus subordinados e afirmado calmamente "São nossos!". O mesmo Napoleão que, para Ridley Scott, tomar um forte de surpresa já iria, como afirmou num contexto diferente o seu subordinado Genetal Kléber, com as calças cheias de merde...
"A Itália rendeu-se sem resistência"...
Pior estava para vir. A Batalha de Austerlitz, na qual Napoleão deu uma aula de Arte de Guerra aos exércitos combinados dos Impérios da Áustria e da Rússia, representada aqui por uma força infimamente mais pequena, ainda posicionados dentro do seu próprio acampamento (?!), aguardando que o inimigo chegasse... por um vale gelado?!!!
(Longo suspiro)
Ao longo dos minutos seguintes, repetiu-se uma e outra vez que o inimigo queria "tomar a posição mais elevada", deixando-me completamente perdido: estão TODOS posicionados no fundo do vale, o inimigo vai tomar QUAL posição elevada a QUE força?! Para contextualizar, a maestria da Batalha de Austerlitz foi a de Napoleão oferecer a posição mais elevada - as colinas de Pratzen - ao inimigo, e enfraquecer a sua própria ala direita, para levar o inimigo a pivotar para aí, enquanto a Grande Armée subia pelo lado oposto e obrigava o inimigo a trocar a posição elevada pela mais baixa. A ajudar ao seu plano, um denso nevoeiro ajudou a esconder as forças francesas até ao momento fulcral do assalto ao centro. Uma perfeição que fez o Império da Áustria assinar um armistício, e pôr o Império da Rússia em total retirada.
O que Ridley Scott nos ofereceu foi uma escaramuça resolvida em minutos, porque o assalto frontal austríaco e russo não conseguiu tomar a p#rra de um acampamento no fundo de um vale gelado.
Badum, tssss!
Consta que na Batalha de Waterloo, este Napoleão fantasiado carrega sobre as linhas britânicas ele próprio, a cavalo. Da Campanha Russa de 1812, prefiro nem saber detalhes...
Conclusão
Vale a pena verem "Napoleão" de Ridley Scott? Não, Deus do céu, NÃO! Há maneiras bem mais proveitosas de investirem duas horas da vossa vida. Para conhecerem melhor quem foi e o que conseguiu este titã da História, entre o Cerco de Toulon de 1793 e a Batalha de Waterloo de 1815, passando por batalhas decisivas da História como Rivoli, Marengo, Ulm, Austerlitz, Jena-Auerstädt, Eylau, Friedland, Aspern-Essling, Wagram, Borodino, e Leipzig, deliciem-se no YouTube com o canal Epic History TV. Agradeçam-me depois.
Vive l'Empereur! Quer dizer, Vive l'Histoire!
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