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Os Carris também têm Memória

Completam-se hoje 29 anos sobre aquela que passei a tratar como “A Noite do Roubo”, um dos mais infames episódios da História Ferroviária Portuguesa. Numa operação de 12 mil contos, que a imprensa brigantina carimbou de “acto de pirataria”, a CP recolheu na estação de Bragança uma locomotiva e várias carruagens, que depois transportou para Mirandela… em camiões.


Vivia-se a incerteza sobre o futuro da Linha do Tua entre Mirandela e Bragança, depois do descarrilamento de Dezembro de 1991 em Sortes, e a suspensão do tráfego ferroviário nesse troço de 80 km. Enquanto se empurrava para a frente qualquer decisão oficial, a CP negociava com os ferroviários adstritos a Macedo de Cavaleiros e Bragança a sua migração para outras estações, ou o despedimento.


Tudo culminou na noite de 13 para 14 de Outubro de 1992, quando vários camiões surgiram sub-repticiamente pela manhã na periferia de Bragança, suscitando de imediato o alarme popular, e executando a complicada operação só a coberto da noite – mas certamente já não a coberto do incógnito pretendido, no meio de um até hoje inexplicável apagão nas telecomunicações. A via permitia perfeitamente a circulação de material circulante, pelo que esta temeridade maquiavélica só encontrará um vislumbre de lógica no facto de, nesse interregno, a população ter barrado tanto a via como os autocarros de substituição com toros de madeira e reboques agrícolas, em Salsas e nos Cortiços. Afinal de contas, até os brandos costumes têm limites, quando se é vilipendiado de forma desavergonhada.


Apesar de ser o seu capítulo mais negro, a história do desmantelamento quase total da ferrovia em Trás-os-Montes é rica em episódios de um Estado que onde não foi tirano, foi negligente. A forma como as Linhas do Sabor, Corgo e Tâmega foram também elas eliminadas, nesses tempos como nos mais recentes, partilha os mesmos procedimentos: vias degradadas, velocidades reduzidas, horários desajustados, material circulante envelhecido, promessas ocas de reabertura, carris vorazmente levantados. Dois distritos inteiros ficaram subjugados à rodovia, encarecendo tanto a circulação de matérias primas e produtos, como de pessoas.


O futuro, esse, é paradoxal. Os mesmos autarcas que não promovem a mais basilar discussão sobre a ferrovia no território, são os mesmos que “exigem” que o Governo central construa uma nova via do Porto a Bragança e à linha de Alta Velocidade de Madrid à Corunha, e os mesmos ainda que promovem a ocupação do canal ferroviário de todas as vias férreas com ecopistas. Promoção essa que conta com o apoio incondicional da Infraestruturas de Portugal ao mais alto nível, sancionando que se ocupem corredores ferroviários para passeios a pé e de bicicleta, num território pejado de percursos para tal mas a envelhecer e a perder população de forma alarmante, sem sequer se elaborar um estudo de viabilidade da sua reabertura.


A auto-estrada ferroviária de quatro mil milhões de euros, estimativa do estudo publicado pela associação Vale d’Ouro, não é uma via de proximidade, e, portanto, tem uma valência não desprezível, mas também não abrangente. Aliás, o próprio estudo aponta para a necessidade imutável e urgente da reabertura da Linha do Corgo, especificamente. Algo que continua válido e tem sido defendido também para as demais Vias Estreitas do Douro.


Que esta efeméride seja recordada então como o grito que ecoou nas ruas de Bragança nesse ano de 1992: “Queremos o comboio, somos PORTUGUESES!”. Porque não podemos ser escravos

da mediocridade alheia, nem hipotecar o futuro dos filhos deste território, que têm direito a

ajudá-lo a florescer e a renovar-se.




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