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Foto do escritorDaniel Conde

Um grito calado no Vale

Quarta-feira, 15 de Junho de 2022.


É dia de férias para mim, mas não para a minha piolha; rotina habitual - levantar, preparar a mochila, e ala para a escola. Sobra-me tempo para quase abrir o cabeleireiro em Vila Real e mandar uma respeitável carecada. Um café cheio e uma sandes depois, e são horas de levar o carro até ao Tua: hoje é dia de filmagens na Linha do Douro.


O convite chegara em Abril, pelas mãos da escritora e jornalista alemã, radicada no Algarve, Catrin Ponciano. A emissora Südwestrundfunk/Arte pretende fazer um episódio sobre a Linha do Douro para o programa Eisenbahnromantik, e, na busca por pessoas para entrevistar e incluir no episódio, foram arranjar a minha recomendação e contacto nada menos que ao deputado José Carlos Barbosa, um ferroviário da zona de Paredes. Nada mau, diria eu.


Não há forma "suave" de chegar ao Tua por estrada. Aliás, não há forma suave de chegar quase a lado nenhum no vale do Douro por estrada. A Linha do Douro é a artéria por excelência para cruzar esta região, melhor ainda do que navegando no próprio gigante ibérico, nas suas sucessivas albufeiras, desde o Porto e Vila Nova de Gaia até tocar na Espanha em Barca d'Alva, 200 km acima. Mas a viagem tem para mim um sabor ainda mais amargo: desde a construção da putativa barragem do Tua, nunca mais tive gosto em sequer me aproximar do Tua. Este não é o vale que conheci, nem a destruição da Linha do Tua me traz nada a não ser um doloroso rancor.


A descida de São Mamede de Riba Tua até à foz do Tua começa inevitavelmente, e enquanto a condução permite, vai-se deitando um rápido vislumbre à albufeira em baixo; o quanto tudo ficou desfigurado, padronizado, desinteressantíssimo. Não se ouve mais o buliçar do rio, desapareceram longas faixas de olival que desciam até à Linha do Tua, sumiu da vista o apeadeiro de Tralhariz, perdeu qualquer gigantismo o desfiladeiro das Fragas Más. Um charco de água apenas, como milhentos outros por aí a fora - por mais placas que plantem na A4 e IC5, por mais percursos pedestres que brotem do chão, por mais sites histéricos que criem.


A própria barragem em si, a passagem junto da qual a fazer finalmente explodir a minha revolta vociferando vocábulos menos próprios - ainda bem que ia sozinho no carro - pareceu-me solidamente patética. Mais pequena do que me lembrava, mais próxima ainda da área do Douro Vinhateiro Património da Humanidade do que me lembrava, mais inútil e representativa de uma era de desvario e ganância do que me lembrava. Um verbo de encher que não trouxe - surpresa das surpresas - absolutamente nada de positivo à região (nem ao país), salvo umas esmolas pintadas de verde distribuídas pela EDP, e um ou outro tacho por bom comportamento. Não se sente o cheiro a água de rio: apenas putrefacção decomposta de corrupção e hipocrisia.


Desfaço a curva à saída da elegante ponte de 1940 - precursora da ponte da Arrábida, sabiam dessa? - e dou de caras com uma enorme cobra a atravessar a estrada: abrando, desvio-me, creio que ainda pisei a cauda do pobre bicho, que se elevou ou em susto ou em agonia assustadoramente no ar, antes de fugir apressadamente para a berma. Nada grita mais "cheguei a um sítio ermo e quente" do que ver uma cobra a atravessar pachorrentamente a estrada. Passa-se por cima da Linha do Tua, ziguezagueia-se acima do casario de Foz Tua, até finalmente se descer à estação. O carro arranja lugar mesmo ao lado do afamado "Calça Curta", e vai ficar até ao fim da tarde a contemplar o vinhedo do lado de lá do rio Douro. O motor pára: chegámos ao Tua...


Linha do Tua Estação do Tua
Estação do Tua, plataforma da Linha do Tua.

Reentrar na estação do Tua foi ser assaltado por um indescritível misto de saudade, de reencontro, de tristeza, de uma profunda tristeza de quase trazer lágrimas aos olhos. Reduziram a Linha do Tua, a segunda maior Via Estreita de Portugal, a um nada. Um absoluto nada. Das três vias que atravessavam a estação, entre o EP (Edifício de Passageiros) e a rotunda lá ao fundo, sobra uma. Uns nove vagões de bitola métrica soçobram, quatro resguardados por uma rede metálica, outros cinco entregues aos elementos e ao vandalismo, numa via que creio que já nem ligação tinha às outras. Soam inegavelmente a coisas do passado, naquela sensação a que já me habituei há vários anos do anacronismo a que foram votadas estas vias. Presenças que já conheço do passado quase todos eles, como o vagão postal, o vagão da brigada de obras metálicas, e até o vagão socorro amarelo adstrito à estação de Mirandela.


Linha do Tua vagões
Em primeiro plano, o vagão socorro da estação de Mirandela - vários vagões se lhe seguem.

Entro na sala de espera. Tudo igual, como desde o tempo em que eu aqui viajava regularmente, entre a Régua e Mirandela, e depois desde Lisboa até Mirandela. Na "primeira linha" aguardavam-me as Napolitanas, rebocadas pela esfuziante locomotiva da série 9020 e ainda acompanhadas de um vagão J, entre 1994 e 1999; de 2002 a 2006, foram as automotoras verdes do Metro de Mirandela que lá me levavam pelo vale do Tua acima. Agora, uma via vazia, ironicamente o início de um percurso pedestre em cima da própria linha até à ponte das Presas, anunciada de forma gargantuesco-cómica num enorme cartaz no parque de estacionamento. Curiosa a proporcionalidade entre o tamanho dos cartazes/projectos, e a pequenez de espírito que representam.


Horários Linha do Tua
O template de horário da Linha do Tua, que desafiadoramente criei enquanto Assessor do Metro de Mirandela (2009-2012), aqui em exposição nas bilheteiras da estação do Tua.

Aproxima-se a hora de apanhar o comboio para o Pocinho. Chega a Catrin Ponciano e a equipa de filmagens, as devidas apresentações, e as primeiras instruções do dia: "Eles entram, depois entro eu, depois entra o Daniel, quando lhe fizerem sinal, OK?". Não sou actor, mas também já não é propriamente a primeira vez que estou do lado de cá de uma câmara para uma produção, pelo que tudo soa de forma absolutamente natural; há cruzamento de comboios, entre quem vem do Pocinho e quem vai para lá, e dá tempo para dois dedos de conversa com o Chefe de Estação do Tua, a quem cumprimento enquanto ex ferroviário. "Trabalhei no Metro de Mirandela", digo; "mas quê, como maquinista?". Divertido rever este clichê do passado, já que enquanto ainda estava no Metro e dizia que trabalhava lá, perguntavam-me sempre se era maquinista.


Linha do Tua Linha do Douro
A típica estação portuguesa com a sua mascote.

Entro natural/teatralmente na renovada carruagem Schindler, mais um reencontro há muito esperado - tanta vez viajei nestas carruagens na década de 1990. As instruções são para entrar, e sentar ao lado da equipa de filmagem; "Não olhe para a câmara!" - truque indispensável que já aprendi há vários anos. E sento-me. E porra se não se me desenhou imediatamente um sorriso de orelha a orelha, a sentar-me novamente naqueles bancos corridos onde já não me sentava há vinte anos, com uma janela de comboio aberta e virada para o Douro. A possante locomotiva 1400 atira o seu berro, os vinhedos tratam de o carregar pelo monte acima, e tudo arranca sincronizadamente, ao assobio ritmado do seu monstruoso motor diesel. Adolescente de novo no vale do Douro, como que apenas a ir para férias ou fim de semana prolongado, desde o Colégio Salesiano de Poiares, rumo a Vilar de Ossos, Vinhais, ou para a Pontinha, Odivelas.


O gesto é natural, instintivo, quase primevo: o comboio arranca, e eu acorro à janela aberta. O cameraman debruça-se na janela seguinte; espero que estas imagens cheguem ao documentário, porque aquela cara de satisfação não é inventada - é pura emoção retratada. Um pouco mais à frente, instruções para me sentar de novo, e passarmos a uma entrevista. Falo sobre como comecei a minha jornada na ferrovia, como passageiro, como activista, como ferroviário. A Catrin insiste para eu falar sobre a minha experiência pessoal, depois de eu falar naturalmente um pouco mais sobre o papel da ferrovia - vícios de décadas de activismo - do que do meu lugar nela; e falo, de voz embargada, aquela saudade/revolta a vir ao de cima de novo. Ninguém numa multinacional eléctrica alguma vez entenderá o quanto de uma alma se pode rasgar a troco de milhões em apenas mais um asset no portfolio.


O túnel da Valeira traga-nos, e saímos do outro lado, a correr para a Ferradosa, enquanto algumas linhas têm de ser repetidas por causa do barulho excessivo dentro do túnel. O rio troca-nos as voltas depois da ponte metálica, e é hora de apreciar a viagem até ao Pocinho. Desde o Pinhão para cima o Douro muda: já praticamente não há aldeias ribeirinhas, elas fogem lá para o alto, brilhando como luzeiros, estrelas, no firmamento trasmontano à noite. E vem Vargelas - guarnecida nesse dia (termo ferroviário para "esta estação tem aqui o seu Chefe hoje, não está fechada e muda") - e o Vesúvio, sobranceiro à quinta da Ferreirinha, e por fim uma das poucas estações portuguesas que ostentam não um, mas dois nomes: Freixo de Numão - Mós do Douro. À frente, a civilização na sua pressa não quis contornar o desafiador Vale Meão, e perfurou-o de lado a lado numa sucessão de três túneis. Estamos no Pocinho, e antes que este salão de sonhos se imobilize na plataforma, hora de matar saudades de uma tradição pouco saudável mas impossível de aplacar: viajar à porta de um comboio em andamento - sorry mamã.


Estamos no Pocinho. O calor abrasador de um dia de pré trovoada no vale do Douro é infernal. Definem-se locais e temas de filmagem in situ, enquanto se compram garrafas de água no bar da estação, onde várias pessoas acabam de começar o seu almoço - "Bom proveito!". Um providencial e fresco pão com chouriço encontra caminho também para o lado de cá do balcão - pular sobre o almoço? Estes alemães são loucos!


Decidimos ir ao fim da circulação - não é bem o fim da linha. Fica na passagem de nível a montante da estação, bem perto do PK 172 da Linha do Douro - isto é, precisamente a 172 km do ponto central da estação de Porto - Campanhã. Em manobras, um comboio pode ainda chegar até aqui, mas não mais além, como atestam as travessas e brita novas que aí terminam, começando a linha mais antiga e gasta dos 28 km até Barca d'Alva logo a seguir à casa da guarda de passagem de nível. Gravamos mais algumas considerações sobre este término abrupto imposto em Outubro de 1988, e enquanto a equipa grava algumas imagens, deu tempo para dar um salto até à entrada vedada da imponente ponte rodo-ferroviária do Pocinho: durante décadas, desde o início do século XX até à década de 1970, carros e peões passavam no tabuleiro de baixo - carros num sentido apenas de cada vez - e os comboios da Linha do Sabor no tabuleiro de cima. A ligação rodoviária sobre a barragem do Pocinho veio providenciar alternativa aos automóveis; já a Linha do Sabor, foi assassinada em Agosto de 1988.


Pocinho
Placa de localidade para quem entrava no Pocinho pela ponte rodo ferroviária. Foto: Catrin Ponciano.

Voltamos à carrinha, são horas de ir até Barca d'Alva. Lembrava-me ainda vagamente da rota que segui na primeira vez que visitei Barca d'Alva - um inesquecível fim de semana lá para 2005, em que com um grupo de pessoas fizemos a pé todos os 17 km desde a estação de Fregeneda (Espanha) até voltar a Portugal. Mas viajar por uma sucessão infindável de curvas na parte de trás de uma carrinha ia-me deixando um tudo nada enjoado - a Linha do Douro neste mesmo trajecto tem troços preparados para 100 km/h... A descida para Barca d'Alva chegou, e o deslumbramento na equipa inteira era palpável. Para quem não conheça, esta é a porta de entrada para as Arribas do Douro; e mais não digo.


Atravessamos a ponte Sarmento e os seus vários arcos, passamos debaixo da pequena ponte metálica à entrada da estação, e aí estamos nós no nosso destino: a estação que durante praticamente um século fervilhou de actividade, com milhares de passageiros e toneladas de mercadorias a transitar diariamente entre Portugal e Espanha, a única estação com letreiro em letras douradas do país... emparedada de alto a baixo, com o cais coberto e as cocheiras a desfazerem-se.


"Reabram-me porra!", grita o cartaz de impaciência. Quem espera, sobretudo no Interior, desespera, e a etimologia de um palavrão transfigura-se para o tornar num sublime grito de resistência. Aqui não há o buliço da avenida AEP ou dos "acessos à ponte", que as rádios nacionais trazem para todo o país, como se o trânsito em Lisboa e no Porto (e sempre nos mesmos locais, bastava gravar o boletim de um dia e repeti-lo o ano todo) valesse um pataco furado para um habitante de Barca d'Alva. Mas o que em Lisboa e no Porto o cidadão comum não ouve diariamente, é que para se chegar a Barca d'Alva se calcorreiam quilómetros infindáveis de curvas, quando durante 100 anos o comboio os punha no Porto e em Salamanca directamente e em pouco (podia ser menos) tempo. Ah, e ao perderem aqui o autocarro de manhã, não há um batalhão de outros autocarros - escusado dizer "e/ou comboios" - logo dali a 5 minutos. Aqui não é o fim da linha, ou da estrada; tampouco do mundo. Por muito que Madrid ou Lisboa o queiram manter como tal.


Saímos da carrinha, e um bafo demoníaco de 39 ºC atinge-nos em cheio. Uns minutos depois tenho de lutar contra a sensação opressora, um formigueiro de pânico, infelizmente já conhecido desde a juventude, a quase tirar-me do sério. Mas a idade e a experiência trouxeram pacientemente as armas para lutar contra essa sensação, e tudo segue dentro da normalidade. "Vai caminhar aqui ao longo da linha"; e vou, com o passo tão firme quanto caminhar em cima das travessas e da brita permite, sentindo o peso do simbolismo a cada passo. Activista, trasmontano, ex utente da Linha do Douro, ex ferroviário. Cada pisada em cima da brita calcinada pelo calor e das travessas carcomidas por trinta anos de abandono conta uma história de condenação de um Parlamento a 400 km de distância, onde pulula gente indigna que nem sabe apontar Barca d'Alva no mapa.


Linha do Douro Barca d'Alva
Às voltas junto à rotunda e cocheiras da estação de Barca d'Alva. Foto: Catrin Ponciano.

Aos avanços e recuos, gravação de imagens ou apenas de som, vamos encurtando a distância entre o final da estação e a ponte internacional do Águeda, no meio da qual passa a linha imaginária que define se estamos na República Portuguesa ou no Reino de Espanha. No lado de lá, no cais de Vega de Terrón, um navio de cruzeiros português está em manobras. Mostro à equipa o pormenor delicioso dos escudos nacionais de ambos os países, eculpidos em pedra cada qual no primeiro pilar da ponte no seu respectivo solo soberano - com o escudo português ainda no estilo monárquico da era em que o caminho de ferro aqui chegou, e se embrenhou vale acima à procura do planalto salamantino.


E entramos na ponte. O último PK da Linha do Douro, o PK 200, está lá, números apagados, ainda no pilar de entrada. Vamos até à linha de fronteira algumas vezes; e há filmagens a andar, filmagens parado a contemplar o rio Águeda e as terras de Espanha por onde a linha continua o seu caminho faraónico, e até um drone dá o ar de sua graça. "Neste local não me sinto nem português nem espanhol, mas sim ibérico."; última entrevista mesmo ali, na linha de fronteira, em cima do tabuleiro vedado do lado português. "Não estamos a honrar o nosso compromisso com o projecto europeu ao manter esta ponte encerrada". Pareceu-me uma óptima punch line para encerrar as gravações.


Linha do Douro Barca d'Alva
Gravações na ponte internacional do Águeda, na linha de fronteira. Foto: Catrin Ponciano.

Há uma cena, unscripted, que valeu a pena acontecer: numa pausa, pus-me a contemplar o sinal avançado da estação de Barca d'Alva, mesmo à saída da ponte e ao lado da casa da Guarda Fiscal, o qual o Chefe de Estação manobraria a partir da própria gare através de pesadas alavancas, para sinalizar aos maquinistas de que forma poderiam entrar na estação. O cameraman apercebeu-se, e começou a gravar sem quebrar o momento. Apenas pediu para repetir depois os gestos que fiz. Espero que faça parte também do produto final.


Umas filmagens de drone depois, apenas à estação, e eram horas de voltar para o Pocinho, a tempo de apanhar o Inter Regional de volta ao Tua - a equipa seguiria depois do Pocinho para São João da Pesqueira, pelo que tive a viagem só para mim. Voltamos ao café da estação, e antes de seleccionar um gelado, a equipa e eu deliciamo-nos com uma rodada de cervejas - alemães, portugueses... Cerveja é um bom denominador comum. As manobras da 1400 no Pocinho são incrivelmente rápidas - entre atrasos e horários a cumprir, quase nem se percebe que aqui é uma estação terminal. Num minuto chega o comboio vindo do Porto - com um valente atraso em cima - no minuto seguinte está pronto a partir de volta à Invicta. "Auf Wiedersehen!", saúdo dos estribos da Schindler, gelado na mão. O documentário sai em Novembro; falta demasiado tempo...


Linha do Douro Pocinho
Horas de voltar para o Tua... Foto: Catrin Ponciano.

Viagem a desfrutar na janela e mesmo de porta aberta, até que em Freixo de Numão uma carrancuda revisora - que ainda no Pocinho tinha confirmado afavelmente que o bilhete era comprado a bordo (Pocinho sem bilheteira é uma bizarria...) - passa-me o raspanete: "Ó senhor, entre lá e feche a porta!". Não tive coragem de lhe explicar que obrigar alguém, de mais a mais um veterano como eu, a viajar na Linha do Douro sem poder ir à porta é um crime de lesa pátria. O dia estava tão estupidamente quente que até o bafo à porta queimava a cara. Mas, uma a uma, todas as paragens intermédias surgem e partem. A estação do Tua chega num instante. Tempo de saltar de novo para o volante e voltar para casa, com um dia para recordar na algibeira.


Não é demais agradecer ao José Carlos Barbosa e à Catrin Ponciano esta oportunidade. Fica mais uma vez o meu muito obrigado.

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